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Artigos / Colunas / Rosana Leite Antunes de Barros

25/01/2022 às 08:00

​A mulher do fim do mundo

Nascida com o nome Elza Gomes da Conceição, filha de um operário e uma lavadeira, na Favela da Moça Bonita, atualmente Vila Vintém, essa é Elza Soares. Uma artista completa que passou por muitas experiências tristes, até se tornar um ícone da Música Popular Brasileira, de outros movimentos e das mulheres.

Bem pequena, criança, ajudava a mãe a carregar latas d’água na cabeça para os serviços domésticos. Teve a sua juventude interrompida por um casamento forçado, sendo mãe na adolescência, tendo gerado 8 (oito) rebentos. Desses, teve a enorme infelicidade de vivenciar a morte de quatro, sendo dois deles por desnutrição quando recém-nascidos, o Gilson por doença e o Garrinchinha de acidente. Falou: “A única coisa do passado que ainda me machuca é a perda dos meus quatro filhos. O resto tiro de letra. Mas filho é uma ferida aberta que não cicatriza. Estará sempre presente!"

Enfrentou a mais dura faceta do machismo muito jovem. Foi obrigada a se casar com quem não queria por terem falado que havia sido estuprada, quando na verdade havia brigado com tal homem. Casou-se a mando do genitor com a finalidade de “lavar a honra” da família. Desta união foi que perdeu os dois primeiros filhos que sequer nome tiveram, já que faleceram após o nascimento por desnutrição. Mais tarde teve uma de suas filhas sequestrada, vivendo com essa dor por trinta anos, até descobrir o paradeiro dela. A saga do sofrimento de Elza Soares teve início sem fim. Somente pensando em tudo que ela passou, é provável com empatia, se colocar na respectiva posição. A posição de muita dor...

Desta primeira união, além da fome, sofreu violência doméstica. Aliás, que a fez eternizar em música de sua autoria, denominada “Maria da Vila Matilde”: “... Cadê meu celular?/Eu vou ligar pro 180/Vou entregar teu nome/E explicar meu endereço/ Aqui você não entra mais/ Eu digo que não te conheço (...)/ Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim.”

Das outras uniões, filhos, filhas e tristeza também. Ela dizia que não desistia de tentar ser feliz no amor. Lutou, e muito, para ser feliz com alguém. Em algumas épocas da vida teve que abandonar a carreira a pedido dos companheiros. Nunca viveu em tranquilidade ou clamaria. Ao se unir com Garrincha, que relatou ser um grande amor, enfrentou o alcoolismo dele, e, ainda, a sociedade que a condenou de que seria dela a culpa do casamento do jogador ter terminado. De tudo fez para que ele deixasse o vício, tendo também abandonado a carreira artística por um tempo para acompanhá-lo. Sofreu ataques do DOPS, em 20 de junho de 1964, com a casa toda revirada e a execução do pássaro de estimação do Garrincha.  É dela também: “Precisamos ser criadas para a liberdade. O mundo é grande demais para não sermos quem a gente é.”

Nada na vida dessa mulher foi tranquilo. Elza não experimentou qualquer lastro de rotina. Com elogios que recebia de parentes, amigos e amigas, em 1953 resolveu participar do programa de rádio comandado por Ary Barroso, o ‘Calouros em Desfile”. O apresentador ao tentar ‘brincar’ com Elza, quem sabe até tentando a ridicularizar disse: “De que planeta você veio, minha filha?” Ela, então, sem pestanejar o responde: “Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary. Do planeta fome”.

Elza Soares brilhou e se afastou muitas vezes da carreira artística, apesar de nunca ter tido a vontade de cometer abandono. Saía e voltava por necessidade. E, em todas as suas voltas, se reinventou. Fez-se um ícone a ser seguido. Disse: “Sou como o dólar: sempre tenho prestígio.”   

Diferentemente das dificuldades que encontrou durante a vida terrena, foi agraciada com uma passagem de muita paz. Gravou dois dias seguidos antes da morte. Apenas no dia da partida amanheceu cansada e calada, o que causou preocupação entre os seus. Sobre a morte dizia: “Não quero pensar que a minha vida tá acabando. Eu quero é mais um dia. E viver esse dia.” Ou ainda: “Não tenho medo da morte porque acho que não vou morrer. Vou virar purpurina.” Todavia, no dia 20 de janeiro apenas expressou como última fala: “Eu acho que vou morrer.”

Dentre vários exemplos grandiosos, a Elza Soares deixou a sua marca para as mulheres. As suas palavras sempre ecoarão: “A mulher do fim do mundo é aquela que busca, é aquela que grita, que reivindica, que sempre fica de pé. No fim, eu sou essa mulher.”

            Sejamos futuras purpurinas... Sejamos Elza!    

Rosana Leite Antunes de Barros

Rosana Leite Antunes de Barros
Rosana Leite Antunes de Barros é defensora pública estadual.
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