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21/04/2024 às 08:09 | Atualizada: 21/04/2024 às 09:36

Oceano, deserto de gelo, ‘parque’ dos dinossauros e lar do Sid da ‘Era do Gelo’: A pré-história de MT

Jardel P. Arruda

Há 3,7 bilhões de anos, quando a Terra ainda era bombardeada por meteoritos e os vulcões mantinham uma atmosfera terrestre cheia de dióxido de carbono e metano, não haviam olhos para testemunhar as cianobactérias que em Mato Grosso fizeram parte dos processos de fotossíntese que oxigenou o nosso mundo. 

Mas ainda assim existem provas de que isso aconteceu. São fósseis chamados estromatólitos, que carregam, incrustados em sua superfície como uma impressão digital, o desenho do “tapete” criado por essas cianobactérias.

Um mar cheio formas de vidas ancestrais durante o período Devoniano, há 410 milhões de anos, glaciações que cobriram longos territórios de gelo, um vulcão em atividade e uma cordilheira montanhosa parecida com a Cordilheira do Himalaima. 

Tudo isso aconteceu em Mato Grosso. Em Cuiabá, em Rosário Oeste, em Jangada, em Cáceres, em todo nosso território estadual.

Há 70 milhões de anos, o dinossauro “mato-grossense” Pycnonemosaurus Nevesi caçava suas presas em florestas densas. Com mais de 3 metros de comprimento, bípede e carnívoro como o famoso tiranossauro.

Há 27 mil anos atrás, mastodontes, preguiças-gigantes, tatus gigantes e outros animais da megafauna coexistem com o ser humano, contrariando a tese e que o homo sapiens teria chegado ao continente Americano há 13 mil, como provavelmente você aprendeu na escola.

E existem provas de tudo isso. Fósseis, a exemplo dos estromatólitos, carregados de informação. Carregados de história e ciência sobre a nossa terra. 

E esse conhecimento está disponível no livro História Natural de Mato Grosso, que está disponível online de forma gratuíta e também é apresentado em escolas pelo doutor em Geociências Caiubi Kuhn, um dos seus organizadores, com quem o Leiagora conversou sobre divulgação científica em Mato Grosso:



Leiagora - Caiubi, explica o que temos nesse livro que o torna tão especial?

Caiubi Kuhn - Tem a história geológica do planeta, desde a tectônica de placas, até a ocupação pelo ser humano. Só que o que o bacana é que traz isso para a história geológica do estado de Mato Grosso. Por exemplo, onde tem rochas formadas pelo mar, onde tem rochas formadas por rios, onde tem rochas formadas por glaciações. Então tudo isso a gente tem de rochas dentro do estado. Por exemplo o Domo do Araguainha, que é a maior cratera de impacto de meteorito da América do Sul. 


Leiagora - Provocou frisson o novo mapa que o IBGE adotou, com o Brasil no centro. São coisas um pouco diferentes, mas são medidas que invocam o protagonismo local perante a ciência, a valorização do local.

Caiubi Kuhn - Justamente! Para um professor, na hora que tiver um professor de história ou uma professora de biologia que for falar de, por exemplo, da migração do homem pela América, poderem falar que a gente tem o segundo sítio arqueológico mais antigo das Américas aqui em Mato Grosso, que é o sítio de Santa Helena, onde temos fragmentos que mostram a ocupação do homem aqui a 27.000 anos.

Trazer isso principalmente para quem está próximo, uma criança, um professor que está no município de Jangada, no município de Rosário Oeste, ou o mesmo Cuiabá, que estão bem próximos de um dos sítios arqueológicos mais importantes das Américas, que mostram a presença do ser humano convivendo com os animais da megafauna. 


Leiagora - Isso muda um pouco o que eu aprendi…

Caiubi Kuhn - Sim, Sobre o homo sapiens ter chegado às Américas há 13.000 anos, pelo Estreito de Bering. Ó, como ele chegou aqui é uma outra história, mas que ele já estava aqui, no centro da América do Sul, há 27.000 anos, isso é indiscutível. Então é um dos sítios arqueológicos mais importantes das Américas e fica aqui em Mato Grosso. Só que quando você olha na educação nossa, isso não é trabalhado. 

E aí, a ideia do livro foi trazer isso, mostrar que que aqui a gente já teve os animais da megafauna. A gente já teve Preguiça- gigante, a gente já teve Tatu-gigante, nós já tivemos Mastodontes, que são os elefantes brasileiros, né? Tatus do tamanho de fuscas. Tudo isso a gente já teve aqui em Mato Grosso. 


Leiagora - Você tem apresentado esse material em várias escolas. Acredita que esse tipo de material tem mudado a percepção da criança e do adolescente em relação à ciência?

Caiubi Kuhn - Muda o valor também que eles dão para o próprio lugar onde eles estão. Se você ver uma criança, às vezes ela mora do lado de um sítio arqueológico, paleontológico, em cima de uma rocha que tem uma história muito interessante…. E aí na hora que ela entende que o lugar onde ela tá faz parte da história do planeta, que faz parte da história da evolução da vida, que faz parte da história da evolução humana, traz outra percepção.


Leiagora - Dá um exemplo, por favor.

Caiubi Kuhn - Quando a gente leva fósseis de Mato Grosso, de dinossauros daqui, de tatu-gigante daqui, de preguiça-gigante daqui, de animais marinhos de Chapada dos Guimarães, de invertebrados, quando a gente mostra isso, leva isso até essas pessoas, eles entendem que o lugar onde eles estão tem uma riqueza científica muito grande, que tem uma história muito importante. 

E isso não está nos livros didáticos nacionais. Normalmente os livros didáticos nacionais, quando tem exemplo, são de outras regiões e às vezes de fora do país. 

Então é muito mais legal aprender que, por exemplo, quando se fala de placa tectônica, que Cuiabá está num limite onde já foi uma cordilheira parecida com o Himalaia. A América do Sul foi ‘colada’ com a formação dessa cordilheira, onde antes existia um oceano entre o que é o Sul do Brasil e o que que é o norte do Brasil. Esse oceano, quando ele se fechou com movimento das placas, formou essa cordilheira E isso é um pouco da história das rochas que tem aqui em Cuiabá. 

Então quando você vai discutir tectônica de placas, por exemplo, e trazer essas referências aqui para a gente as referências, por exemplo, dos tipos de rocha que já se formaram aqui e de como se formaram, muda a percepção que a pessoa pode ter sobre um tema. Essa é a ideia desse trabalho. 


Leiagora - E essa ideia é trabalhada com quais informações no livro?

Caiubi Kuhn - Temos aqui informações sobre aquíferos, sobre utilização de recursos minerais, sobre rochas, sobre os povoamentos do Estado de Mato Grosso, as diferentes culturas que já passaram aqui. Nós temos aqui informações sobre os biomas do Estado… Qual o município que está em cada bioma.. Cáceres é um município que tem os três biomas, por exemplo. 

Só que ao mesmo tempo a gente entende que a transição dos biomas não é igual como está no mapa. Ali em Chapada você está no meio do cerrado e vai ter árvore que é da floresta amazônica, vai ter animais que fazem a transição do cerrado para para o Pantanal,plantas que vão estar numa intersecção do mesmo jeito. E aí isso é uma das coisas legais do livro, ter essas explicações.

No meio do Pantanal tem os Mandacaru, que se relaciona com a caatinga, mostrando que inclusive o Pantanal e a Caatinga têm uma correlação. Em algum momento, alguma correlação histórica, talvez na origem do do Cerrado, já teve momentos com essa interligação. 

Então você trazer essas informações sobre animais, sobre flora, sobre relevos, os tipos de relevo. O livro também traz isso, as unidades de relevo de Mato Grosso. Quais as unidades de relevo que tem no estado de Mato Grosso? Então você tem aqui. O que que é depressão, serra, chapada? Tudo com exemplos locais. 


Leiagora - Há quanto tempo você está apresentando esse material já nas escolas?

Caiubi Kuhn - Esse livro ele foi lançado no final de 2022, mas a gente faz esse trabalho nas escolas… Eu comecei a fazer, na verdade, na época que eu estava no ensino médio. Em 2006 foram as primeiras exposições itinerantes que comecei a fazer, não estava ainda nem na faculdade. Eu estagiava no museu Casa de Dom Aquino. E desde então a gente manteve esse fluxo de exposições ocorrendo de forma às vezes mais organizada, ou um pouco mais esporádica .


Leiagora - E quando surgiu a ideia de criar um livro que é disponível online?

Caiubi Kuhn - Justamente pela questão de não se ter um material referência para o professor utilizar aqui no Estado.Como que um professor vai abordar com seus alunos um assunto? Você precisa dar uma informação sistematizada. Então a ideia do livro é trazer essa informação sistematizada, essa ideia surgiu já há alguns anos e conseguiu ser consolidada com a participação de diversos autores .

Então a ideia é apresentar isso de forma sistematizada e os capítulos estão conectados também. Você consegue ver aqui na sequência a Geologia e os minerais, depois a parte de paleontologia, depois, na sequência, você já vê por exemplo a ocupação humana. Então você consegue ver essa conexão entre os diversos temas com uma linguagem mais simples, que possa ser abordado numa Ensino Fundamental no ensino médio e que um professor consiga passar para o aluno e falar vamos estudar os biomas do Estado? O conteúdo está em 10 páginas. Vamos estudar o relevo do Estado? Em 10 páginas você estuda o relevo do Estado. Então é aquilo que pode ser feito em uma aula de uma forma tranquila e trazendo os exemplos regionais. 


Leiagora - Eu sei que você tem uma atuação muito ligada a Chapada dos Guimarães, que é você nasceu e também onde trabalha a questão do geoparque, trabalha com divulgação Científica. Como é a relação da criança, do adolescente chapadense com seu território?

Caiubi Kuhn - Eles já tem uma noção maior hoje do que Chapada representa principalmente por causa das exposições itinerantes que são feitas, os trabalhos que são feitos junto com as escolas e com os professores. 

Mas, se nós formos olhar isso há algum tempo atrás, era mais fácil uma criança do Rio de Janeiro ou de São Paulo ter tido acesso a um fóssil de Chapada dos Guimarães do que uma criança Chapada dos Guimarães, mesmo essa criança às vezes estando há dois, três quilômetros de distância do lugar onde são encontrados esses fósseis. 

Fósseis são coletados em Chapada, por exemplo, desde o século XIX, mas dificilmente chegava nessas comunidades exposições, informações científicas que possibilitasse que aquelas crianças, aqueles professores, que aquelas pessoas pudessem entender e trabalhassem aqueles conteúdos. 


Leiagora - E isso tem mudado?

Caiubi Kuhn - Hoje, com essas iniciativas que são feitas em Chapada pelo geoparque, por essas exposições itinerantes, a gente consegue levar até essas comunidades essa informação que em alguns casos saiu de lá mesmo. Então aquele material científico que saiu de muito próximo da comunidade, que foi para uma instituição museológica, no caso hoje o Museu de História Natural, aqui em Mato Grosso, que é com quem eu trabalho esse tipo de projeto, e quando a gente retorna para essa comunidade a gente permite que eles tenham acesso àquela informação científica que está ao lado deles.

E quem sabe incentivar os jovens de lá a se dedicarem ao estudo. Não só ao estudo da história do planeta, mas ao estudo como um todo, entender que a ciência faz parte da vida deles.

É de fato muito legal você ver as criancinhas…  eles te esperam com expectativa. A gente faz todo ano um concurso de desenhos e tem 400, 500 crianças de Chapada inteira que se inscrevem no concurso. Então é aquele negócio super esperado para eles conseguirem mostrar, para conseguirem falar sobre o que que tem ali na visão deles. 

Mostrar o que tem em Chapada dos Guimarães em termos de rocha, de fóssil, de história do município. É muito, muito legal.


Leiagora - Eu imagino. Quando era criança  assistia filmes sobre dinossauros, sobre o passado remoto de um lugar e nunca era sobre aqui. Parecia que existia somente um vazio.. 

Caiubi Kuhn - E isso não é verdade. Eles entendem que, por exemplo, tem um dinossauro importantíssimo que foi descrito com fóssil de Chapada. Eles entendem que tem fósseis de crocodilos, de tartarugas, que tem fósseis de diversos tipos de animais em Chapada, dos Guimarães. Que Chapada teve um vulcão, já teve deserto, já teve outros rios, que já foi mar.

E isso é legal para outras regiões também. Quando eu vou, por exemplo, em Rosário Oeste, ou quando eu tô ali em Jangada, onde temos registros de rochas glaciais, que representam glaciações que já existiam nesta região. Nós temos também ali rochas que, dentro delas, guardam fósseis cianobactérias, que são algas que já fizeram o processo de fotossíntese e ajudaram na oxigenação do planeta.  Que se encontra nas cavernas, ali de Rosário Oeste, fósseis de preguiça-gigante, tatu-gigante. 

Então você vai para lugares diferentes e você encontra diferentes tipos de informação geológica. Esse é um dos exercícios que a gente faz quando vai num município.


Leiagora - Como assim?

Caiubi Kuhn - Qual é a história da Rocha que tá embaixo da escola? Toda rocha conta alguma coisa. O que aquela rocha conta? A gente tenta trabalhar isso também, pra pessoa entender que o lugar onde ela tá, por mais que seja uma referência cotidiana e às vezes ela não veja como algo especial, às vezes traz uma parte importante da história do planeta.


Leiagora - Então, para finalizar, um resumo sobre qual a importância da divulgação científica em nível local na educação?

Caiubi Kuhn - A divulgação Científica, ela é uma das formas não só da gente incentivar os jovens a se dedicarem ao estudo, mas deles entenderem também o planeta onde eles estão. 

A divulgação científica em si, quando ela é feita focada para as periferias, para o público que não têm acesso a ela normalmente, abre janelas, abre portas para curiosidade, abre portas para entender que o universo ao nosso redor é formado por inúmeros elementos que podem ser estudados. Que aquilo ali vão dar respostas fantásticas.

A divulgação Científica, ela é, no fundo, uma forma da gente permitir que essas crianças consigam sonhar, que elas consigam enxergar que em volta delas tem um universo fantástico em termos de informação. Para eles entenderem que não é só nos Estados Unidos que tinham dinossauro, que o Sid da Era do Gelo andava por aqui. Que aqui nós tínhamos mastodontes, que nós temos uma das maiores crateras de impactos de meteorito. 

A divulgação científica traz muitas coisas e com isso eles passam a entender que aqui também pode se fazer ciência. Esse é o principal sentido, tanto do processo que é feito de exposições em escolas, como do livro, mostrar que Mato Grosso é um lugar rico em ciência e que pode ser muito mais se tiver investimento.
 
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